quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Memórias do Rio Alcântara


Se o Rio Alcântara um dia foi caudaloso, não sei dizer, mas nos idos de 1954 suas águas barrentas de pós-chuvas eram facilmente vencidas de margem a margem pelos moleques desocupados. Eles saltavam de qualquer modo dos barrancos e, saindo de um tosco mergulho, iniciavam impetuosas braçadas até alcançar a margem oposta para refazer logo, em sentido contrário, o mesmo trajeto. Eram dias de sol e alegria, de fuzarca e de novas descobertas.

Havia densa vegetação naquela época, que o progresso consumiu mais tarde. E havia as trilhas, as sendas, em meio a uma flora verdejante, viçosa, e que parecia intocável e eterna. Por ali andava a garotada horas a fio, sem nada em que pensar, nem nada para fazer. As aulas terminavam no meio do dia e a tarde era toda nossa.

E depois de uma manhã estafante, uma tarde à beira do Rio, onde, com certa dificuldade, podia-se pegar peixes; era muito agradável. As varas, é claro, eram de bambu e os anzóis, velhos e enferrujados, mas acolhiam bem as minhocas, encontradas sem problema nas margens. E não sustínhamos as varas de pesca, apenas as enterrávamos um pouco no saibro e as deixávamos ali, até que um puxão nos informava de que algo mordia a isca. Então corríamos em algazarra e tentávamos recolher o incauto peixe. Sempre pequeno.

Mas, mesmo naqueles dias, o Rio se nos parecia dar sinais de cansaço pelo avanço das construções às suas margens. Lenta mas inexoravelmente, as margens eram assoreadas com lixo, entulho, ou qualquer material deixado ali ao acaso. A constante agressão foi diminuindo o fluxo das águas e as foi tornando cada dia mais sujas e pouco piscosas. O Rio agonizava e hoje persiste em sua contínua caminhada para o fim. As pontes enormes, construídas para vencê-lo, agora se mostram maiores que o necessário. O Rio é um filete d’água ao chegar ao centro de Alcântara, por onde passam águas negras e malcheirosas, e ninguém mais o respeita ou admira. Mas ele teve sua época de esplendor. Lavou muita roupa e deu banho em muitas crianças.

O Rio Alcântara é um microcosmo do que ocorre no resto do mundo. Por toda parte, rios definham e morrem, quando suas nascentes são esmagadas pelo progresso, ressequidas por faltar a necessária vegetação protetora. Morrem por falta de cuidado e, pior, morrem por serem agredidos por nós. E não culpemos as mudanças climáticas, porque somos culpados também por estas.

Sinto saudades do meu Rio da infância. E da infância do meu Rio. Eu vivi um tempo sem tempo, sabendo da tarde e da noite porque o sol amenizava seu calor. Ou pela fome, que nos levava de volta a casa. Não fosse isso, jamais sairíamos das paradisíacas margens do Rio Alcântara. Ele vive em meus sonhos, forte, robusto, impetuoso, mas também transparente e calmo, e, ao lembrar dele, minh’alma também se acalma, se aquieta. E volto a visitar o Rio da minha infância.
(Vilaça - 27/jul/2001)


Clarival Vilaça é escritor. Nasceu em Santo Antonio de Pádua, norte do Estado do Rio, e mora em Alcântara desde 1954. Esse texto foi gentilmente cedido por ele para publicação em nosso blog.

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